11.7.10

Seis meses depois do sismo. Haiti: um país ainda em ruínas

11.07.2010 - 10:34 Por Francisca Gorjão Henriques (in Público)
Passaram seis meses. Uma parte muito pequena dos 25 anos que o Governo do Haiti diz serem necessários para pôr o país de pé. Continua a haver escombros nas ruas, e uma destruição ainda mais difícil de limpar: aquela que cada haitiano leva consigo.


Meio ano passado sobre o terramoto que matou mais de 250 mil pessoas, feriu um milhão e meio e deixou outro tanto sem casa, alguns visitantes afirmam que a capital do Haiti continua tristemente a assemelhar-se a um palco de guerra. O país fez poucos progressos na reconstrução, denunciava há um mês um relatório do Senado norte-americano. O documento apontava o dedo a uma ausência de liderança, desentendimentos entre doadores e uma desorganização geral.

Mas a destruição que está à vista de todos não foi apenas provocada pelo sismo de 12 de Janeiro. É também uma consequência de dois séculos de negligência e todos sabem que isso não se resolve do pé para a mão.

Os Médicos Sem Fronteiras alertaram para as "condições desesperadas" em que as pessoas estão a viver. "Há um fosso crescente entre o entusiasmo e as promessas de ajuda às vítimas do terramoto da primeiras semanas, e a crua realidade no terreno passado meio ano", comentou a missão dos MSF no Haiti - a maior das suas quatro décadas de existência.

São ainda profundas as feridas do terramoto de 7 na escala de Richter. E muitas não estão sequer à vista: stress, ataques de pânico, falta de memória... A boa notícia é que, adianta a organização, há agora mais haitianos com acesso a cuidados médicos do que antes.

Quando 1,5 milhões de pessoas estão sem casa é porque muito está por fazer. Os campos de refugiados estão a transformar-se em bairros de lata feitos de tendas encharcadas onde, na melhor das hipóteses, daria para passar um fim-de-semana, escrevia há dias um jornalista canadiano do Montreal Gazette. O Mundial de Futebol trouxe alguma diversão e várias bandeiras do Brasil e da Argentina para os campos, lê-se. "De outra forma, as pessoas passam os dias a jogar dominó, lavar roupa, cozinhar, secar. O pior é que o espaço onde vivem dificilmente mudará muito antes do próximo Verão, e mesmo então não será uma casa permanente".

Não é possível saber até quando os campos serão necessários, adiantou ao mesmo jornal Imogen Wall, um responsável do gabinete de coordenação das questões humanitárias da ONU. "Em Aceh, depois do tsunami, levou dois anos, mas no Haiti os desafios são ainda mais complexos... Vai levar anos só a tirar os destroços da cidade, quanto mais a começar uma reconstrução em larga escala".

Agências esgotadas

Na quinta-feira, a Cruz Vermelha lançou um comunicado em tom desesperado. Chamou a atenção para o estado crítico do sistema sanitário e apelou à comunidade internacional que reconheça que esta deve ser a prioridade da reconstrução.

A missão, sublinha a CV, não pode ficar nas mãos de agências humanitárias e terá de passar para a responsabilidade do Governo, mas para isso é preciso que as autoridades recebam o apoio necessário. "Estamos todos para além das nossas capacidades e estamos apenas a conter uma situação crítica, e não a resolvê-la", afirmou Alastair Burnett, director do departamento de reconstrução da Cruz Vermelha britânica.

Para aquela organização, esta será uma oportunidade de melhorar a rede que existia antes do terramoto. O Haiti é o único país do mundo em que o acesso a condições sanitárias piorou nos últimos anos: apenas 17 por cento da população tinham acesso a uma casa de banho. "Voltar aos níveis sanitários pré-sismo é simplesmente inaceitável", adianta Burnett.

O relatório adianta que a Cruz Vermelha Internacional e a do Haiti conseguiram, até agora, garantir que 240 mil pessoas tenham acesso a casas de banho, a acções de promoção da higiene e a água limpa. "Mas pelo menos metade das pessoas que foram afectadas directamente ainda está para ver quaisquer melhorias na sua situação sanitária e de acesso a água".

O Programa Alimentar Mundial (PAM, das Nações Unidas) alerta também que são necessários 226 milhões de dólares da ajuda prometida para fazer face às necessidades deste ano. Até agora, o PAM recebeu 52,4 por cento daquilo com que os vários países se comprometeram.

Ainda assim, é de optimismo o tom de Stephanie Tremblay, porta-voz do do Programa Alimentar Mundial no Haiti. "Há uma coisa de que nos orgulhamos: evitámos uma crise humanitária em larga escala", diz ao PÚBLICO por telefone a partir de Port-au-Prince. "Conseguimos arrancar com um programa que garantia que 4 milhões de pessoas tinham o que comer todos os dias".

A tarefa foi ciclópica. "Foi precisa muita coordenação com o Governo e comunicação com a população, dizer-lhes: "É aqui que vão receber comida; têm de ir acolá , mandem os vossos filhos para a escola", etc. A destruição era generalizada. O que fizemos foi muito positivo".

A assistência alimentar tem sempre os seus limites e inconvenientes. A bem do país, não pode durar demasiado. "Distribuir comida gratuitamente todos os dias pode destruir a economia local", explica Stephanie Tremblay. "Depois do sismo, o Governo ficou sem conseguir funcionar - aliás, nada funcionava. A nossa função era garantir que as pessoas tinham o que comer. Mas as lojas foram abrindo, e é estranho dizer isto, mas a vida continuou".

E, como tal, no início de Abril, o PAM deixou de fazer uma distribuição alimentar maciça e, a pedido das autoridades, passou para outros programas. "Temos projectos de ajuda a crianças: todos os dias, 655 mil recebem refeições quentes e nutritivas na escola, com legumes frescos, etc.". O objectivo é fazer esse número subir aos 800 mil.

Há também o programa Cash and Food for Work (dinheiro e comida em troca de trabalho). As pessoas são contratadas para "todos os tipos de trabalho": limpar destroços, drenagem de canais, recuperação de estradas e construção de sistemas de irrigação, sobretudo no início. Agora, está mais virado para a produção agrícola sustentável. Em troca, "recebem uma quantidade de alimentos que dá para uma família de cinco, seis pessoas", diz a porta-voz. O equivalente a quase quatro euros por dia (60 por cento em dinheiro e o resto em comida). "Actualmente, há 35 mil pessoas neste programa, ou seja, 175 mil a beneficiar disto. Mas queremos triplicar este número".

A alimentação já era um problema antes do sismo, sobretudo para grávidas e mulheres que estão a amamentar. O PAM faz também distribuição de suplementos nutricionais.

"Queremos fazer isso também com a cooperação de organizações não governamentais, em parceria", avança Tremblay. "E há a questão do dinheiro, que sempre foi uma grande preocupação. Estamos sempre a fazer orçamentos e falta sempre em alguns sectores. Até ao fim do ano, precisamos de 226 milhões para continuar com as nossas operações".

Críticas do Senado

Destroços e estradas intransitáveis ainda dominam, e dominarão por muito tempo, a paisagem. Há disputas sobre terras e atrasos nas alfândegas que impedem o avanço da reconstrução, refere um relatório elaborado pelo gabinete do senador americano John Kerry (democrata, presidente do comité de Relações Internacionais do Senado), depois de várias entrevistas no terreno.

"Apesar de as prioridades humanitárias imediatas terem sido satisfeitas, há sinais preocupantes de que as actividades de recuperação e reconstrução a longo prazo estão a vacilar", lê-se no relatório. O mesmo documento acusava o Governo de Jean-Max Bellerive e o Presidente, René Prevál, de "não terem conseguido comunicar aos haitianos que são eles quem manda e que estão prontos a liderar os esforços de reconstrução". Os responsáveis deverão "ter um papel mais visível".

Bellerive tem uma resposta: "Pedem-me para avançar com mais projectos, mas o dinheiro continua suspenso", disse à AP. Concretizando: no final de Junho, apenas dois por cento dos 5,3 mil milhões de dólares prometidos a curto prazo tinham sido entregues.

1 comentário:

susana disse...

"...apenas 17 por cento da população tinham acesso a uma casa de banho." SEM COMENTÁRIOS!
É bom saber que no meio do caos algumas coisas boas foram conseguidas!